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Infância Rendada

  • Mallê
  • 5 de ago. de 2014
  • 3 min de leitura

Por vezes, aquilo que vivenciamos dentro de nossas casas, todos os dias, torna-se banal. Com o passar dos anos, por consequência das "adultisses" às quais a vida nos leva, nossa casa torna-se outra, frequentemente, nossa cidade e necessidades também.

Vida: vai e vem de ondas. Nos afasta da orla, mas nos trás de volta. Felizmente, há sempre a oportunidade de retornar às nossas origens. Aos quintais palco das nossas peraltices de infância. A velha casa...

Ontem à noite quando a vida me presenteou com um desses regressos, percebi que os meus olhos já não eram mais os mesmos. E marejados, assistiram, nostálgicos, não apenas à cena explicita, presente, mas todos os momentos e pessoas que se foram com o tempo. Hipnotizada pelo som dos bilros, relembrei a minha história como uma renda: tecida aos poucos, fio a fio...

Entramos pela cozinha (como se é de costume em Minas Gerais). Tão logo, apareceu uma garrafa de café e uma lata de biscoitos de polvilho sobre a mesa. Enquanto conversávamos, de lá de dentro vinha um barulhinho, velho conhecido meu.

Lá estava vovó, sentada na sala com sua almofada de bilros. Sentei ao lado dela, como tantas outras vezes, admirando a perfeição do rendado e a agilidade de suas mãos.

Além dela, na minha família ninguém mais sabe fazer renda de bilros. "Não é nada custoso...", ela diz, "...mas não consigo fazer devagar para ensinar". Vó Zia, como carinhosamente a chamamos, já tem 94 anos, e está sempre bordando ou fazendo artesanatos. Apesar da idade, não usa óculos. E mesmo à noite, passa até linha pela agulha sem qualquer dificuldade!

Apaixonada por história que sou, foi só chegar em casa para tentar descobrir de onde veio essa arte tão bonita e de tamanha riqueza cultural.

Mais uma vez, me deparei com os Fenícios. Eles que foram os precursores da escrita, e até mesmo das próteses dentárias, foram exímios mercadores do mediterrâneo. Através de suas trocas comerciais, teriam divulgado as rendas.

A renda de bilro é feita usando como apoio uma grande almofada cilíndrica, geramente confeccionada especialmente para este fim. As primeiras almofadas entraram no Brasil trazidas por mulheres portuguesas

Com tiras de papelão, pequenos pontos são desenhados, servindo como modelo para o desenho que o rendado terá. "Pode procurar qualquer bordadeira, nenhuma terá uma igual a essa. É única". Diz vovó explicando a singularidade de cada peça, já que o traçado é criado, dando origem a peças exclusivas.

Perguntada sobre quanto tempo faz desde que aprendeu a arte, vovó diz não saber. "Eu nem sei mais quando... Foi no tempo da minha avó. Aprendi fazendo nas costas da almofada dela. Ela fazia de um lado e eu do outro. Pensa só, esses bilros que eu uso ainda são os dela...". Já são usados há tanto tempo, que se mostram brilhantes. Lisos e polidos devido ao atrito ao longo de décadas.

Pedacinhos de madeira são usados, enrolando a linha em uma ponta e, na outra extremidade, coloca-se o bilro, que é um coquinho de pupunha ou tucumã (frutas amazônicas). Em outras regiões, fabrica-se um artefato de madeira em forma de pêra alongada.

Para tecer, os bilros são jogados de um lado para o outro, cruzando os fios. Alfinetes são usados para fixar o trabalho nos pontos marcados no papelão, formando, aos poucos, o desenho desejado.

Infelizmente, a arte de tecer com bilros já não atrai mais tantos adeptos. Já não existem mais aprendizes, nos restando o medo de que um dia elementos como este tão importantes para a nossa cultura popular desapareçam.


 
 
 

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