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Livre Como Uma Criança

  • Mallê
  • 28 de jan. de 2014
  • 3 min de leitura

De repente o sapato, antes tão confortável, começa a apertar os pés. Não é mais possível suportá-lo. Assim acontece com uma alma que anseia por liberdade. A inércia do corpo acomodado começa a calejá-la. A segunda-feira dura um ano (bissexto). O corpo pesado, se arrasta. A voz do chefe irrita. A aula nunca termina. A vontade acaba. O ânimo já não existe. Perde-se o tesão.

Pensava em tudo isso observando as crianças na calçada da pequena cidade do interior, jogando bolinhas de gude. Nossas gargalhadas estridentes da infância às vezes tornam-se choro e soluço, e nem se quer percebemos como isso aconteceu.

"Os homens perderam o Paraíso quando deixaram de ser crianças brincantes e tornaram-se adultos trabalhantes" (Rubem Alves). Tenho para mim que o paraíso é um lugar onde se esteja em paz. Se nossa mente não está serena, de fato perdemos o paraíso. E é isto o que acontece quando deixamos de ser criança: esquecemos dos pés descalços sem nada que os aperte.

Minhas ideias foram interrompidas com a euforia dos meninos que, agora, tinham um cachorro no meio da brincadeira. Do outro lado da rua, o pai de um dos garotos observava tudo. Parecia hipnotizado. Talvez estivesse lembrando de tempos idos...

Fui caminhando sem qualquer pressa, lembrando de certa conversa com meu pai, há um ano atrás.


- Pai, quando você era criança, o que sonhava ser quando crescesse?

- Por que quer saber?

- Me responde!

- Piloto de avião. Por que?

- Avião comercial ou um caça?

- Comercial.

- Por que piloto?

- Porque eu achava o máximo um homem que podia sobrevoar todos os outros, em algo tão grande. Para mim, ninguém era mais importante que um piloto!

- E por que você não foi piloto?

- Era algo muito distante da minha realidade. A gente cresce e cai na real... Por que está me perguntando isso agora?

- Porque eu já tenho mais de vinte anos, e nunca conversamos sobre essas coisas importantes...


Aquela conversa com meu pai nunca me saiu da cabeça. Fiquei muito tempo pensando. Eu o vejo se esforçar em seu trabalho todos os dias, exaustivamente, para sustentar a família. Sempre que pode, ele arruma sua mochila e vai acampar em meio ao mato para pescar. Não acho que seja pelos peixes ou pelo esporte. Mas assim como um jangadeiro ao mar, quando meu pai está no rio, em seu barquinho enferrujado, ele não é de ninguém. Reencontra sua essência.

Nossa vida é como os barcos. Um sonho é vela, que o vento sopra e leva além de horizontes, atravessando as ondas. Mas a realidade, esta é como âncora. Faz estacionar, é pesada, prende a um mesmo lugar.

Há quem diga que a liberdade consiste na possibilidade de deixar tudo e caminhar, sem amarras ou raizes. Eu penso que liberdade é ser o que se quer. Muito além do direito de ir e vir, é o direito de ficar onde se quer, pelo tempo que desejar.

É esta minha oração de todos os dias: pra que possamos ser pilotos de nossas próprias vidas, e alçar voos ou pousar, como o coração pedir.


O pai nosso queria estar nos céus

Sobrevoar todos os outros homens

Este era o seu reino

Esta era a sua vontade

Deixar a terra e estar nos céus

O pão nosso de cada dia ele nos dá hoje

Perdoa, pai, as nossas necessidades

Pois nós não nos perdoamos por lhe ter impedido

E não nos deixeis cair na real

Livrai-me de ser "normal"

Amém

Foto: Arquivo pessoal - Mallê

 
 
 

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